Cade você, Bernadette? não foi nada do que eu esperava em muitos sentidos. O livro foi lançado há alguns anos, durante o auge dos vídeos no You tube sobre livros, no momento em que eles estavam se consolidando. E lembro que absolutamente todos os booktubers estavam o resenhando e sendo unânimes sobre ele ser super engraçado. Eu não vi em momento algum essa graça: ele é leve e tem algumas situações cômicas, mas isso não necessariamente faz gargalhar. O título também engana porque passa a ideia de que a história será em torno da procura por uma pessoa. O que não é real, já que apenas depois de mais da metade do livro a pergunta do título se torna necessária. A história é sobre Bernadette, uma arquiteta considerada um gênio que mora em Seattle com a filha e o marido workaholic que trabalha na Microsoft. Ambos são muito bem sucedidos em suas profissões, ou Bernadette era pois ela, misteriosamente, para de trabalhar. A filha Bee, estuda em uma escola particular de classe alta e também é super inteligente. Parece uma vida perfeita, mas não é assim para Bernadette que nunca se adaptou à Seattle e ao modo de vida de ser apenas uma mãe de classe média. O apenas usado não significa menosprezo ao se fazer mãe, mas que ela não fica satisfeita tendo apenas essa identidade. Ser mãe poderia ser uma somatório para quem Bernadette era e uma definição. Ela é perpetuamente hostilizada pela vizinhança por não participar dos eventos sociais da comunidade e da escola, mas não liga para isso e não tenta se moldar ao que seria desejado dela. Assim, a imagem que a vizinhança tem é de uma pessoa arrogante e que se considera melhor do que as pessoas da pequena Seattle. Quando a filha Bee cobra dos pais uma viagem à Antartida que eles prometeram casa ela fosse bem na escola, eles se veem sem ter como negar e o estresse para a viagem é o motor de toda a mudança que acontece na vida de Bernadette e o motor da história. Eu poderia dizer que é o gatilho de estresse dela, mas isso seria entrar na linguagem de doença e disturbio mental do discurso que o livro/filme foi vendido. O mesmo discurso usado pelo marido dela e o mesmo discurso facilmente usado hoje para qualquer sentimento ou comportamento um pouquinho fora do padrão, que não entendemos ou que não gostamos, tanto em nós quanto nos outros. Bem, essa é o mote de Cade você, Bernadette?: uma mulher que trabalhava criando coisas, que se muda para uma cidade pequena e não se adapta ao roteiro da vida que ela deveria desempenhar. E aqui não nenhum tom de autocomiseração ou ressentimento, porque Bernadette não é uma pessoa amargurada ou que tenta fazer qualquer coisa para caber ali. Ela segue sendo ela mesma e segue vivendo. O grande problema acontece porque as pessoas em seu entorno não querem que ela seja ela, mas que se adeque: a vizinha quer que ela participe e dê atenção às suas reclamações e o marido quer que ela não externalize nenhum problema que venha chamar atenção. E, se ela não se adapta, é porque há algo errado com ela. E essa foi a perspectiva de venda do livro e filme: uma pessoa que tem agorafobia e transtorno de ansiedade com problemas de adaptação (sendo que Bernadette e a filha são as únicas pessoas razoáveis e estáveis, tanto no livro quanto no filme). A grande virada na vida de Bernadette foi o nascimento de sua filha, que foi um bebê planejado e nasceu após uma série de abortos espontâneos. Agora, vem spoiler. Bee nasceu prematura e com um problema no coração. Com isso, Bernadette fez a promessa que se sua filha sobrevivesse, nunca mais trabalharia. Para ela, isso era o maior sacrifício de sua vida, pois seu trabalho não era apenas sua renda, mas seu jeito de viver, seu modo de se expressar e a base formadora de sua identidade. É a partir dai que se desenrolou os problemas de Bernadette que culminaram nos eventos do livro. Por ela parar de trabalhar, teve que passar a viver uma vida incompleta e tentando ser alguém que ela não era, ela perdeu sua identidade. Isso é bem sintomático para o nosso contexto social atual: transformamos em diagnóstico mental o conjunto de comportamentos resultantes de algum conflito interno que não conseguimos lidar ou resolver. Vivemos em uma geração que trata superficialmente os sentimentos e atitudes (e isso fica muito claro na intervenção que a personagem sofre que conta inclusive com a participação de uma psicóloga que narra, em detalhes, todos os últimos acontecimentos mas que, sem o contexto, perdem totalmente o seu significado real) e tenta desesperadamente colocá-los dentro de caixinhas com rótulo de algum distúrbio ou problema mental. Não que eles não existam, mas o livro e filme foram vendidos como tendo uma personagem com distúrbios mentais e problemas sociais e ele mesmo mostra que ela não tem. Serve então, no mínimo, para refletir essa patologização da vida. (Um ps: não saber ou conseguir lidar ou resolver um conflito não é um erro, não é incapacidade de qualquer tipo, é só parte do processo. Só destacando para não parecer que isso é algo negativo ou alguma espécie de crítica. Até porque senta lá, e me escuta, para eu dar minha listinha de conflitos internos que não consigo resolver, mas na verdade NEM TENHO QUE, né?) - Dandara -